sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A mulher que passa

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
 Seu dorso frio é um campo de lírios
 Tem sete cores nos seus cabelos
 Sete esperanças na boca fresca!
 Oh! Como és linda, mulher que passas que me sacias e suplicias
 Dentro das noites, dentro dos dias!
 Teus sentimentos são poesia
 Teus sofrimentos, melancolia.
 Teus pêlos leves são relva boa Fresca e macia.
 Teus belos braços são cisnes mansos
 Longe das vozes da ventania.
 Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
 Como te adoro, mulher que passas
 Que vens e passas, que me sacias
 Dentro das noites, dentro dos dias!
 Porque me faltas, se te procuro?
 Por que me odeias quando te juro
 Que te perdia se me encontravas
 E me encontrava se te perdias?
 Por que não voltas, mulher que passa?
 Por que não enches a minha vida?
 Por que não voltas, mulher querida
 Sempre perdida, nunca encontrada?
 Por que não voltas à minha vida
 Para o que sofro não ser desgraça?
 Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
 Eu quero-a agora, sem mais demora
 A minha amada mulher que passa!
 No santo nome do teu martírio
 Do teu martírio que nunca cessa Meu Deus, eu quero, quero depressa
 A minha amada mulher que passa!
 Que fica e passa, que pacifica
 Que é tanto pura como devassa
 Que bóia leve como a cortiça
 E tem raízes como a fumaça.

 Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Não há falta na ausência.


Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada
Aconchegada nos meus braços
Que rio e danço e invento exclamações alegres
Porque a ausência, essa ausência assimilada
Ninguém a rouba mais de mim.

 Carlos Drummond de Andrade,